O afeto está pronto para consumo

Neste natal, a fim de encerrar um ano tão difícil com cautela, fiz duas pequenas promessas. Primeiro, prometi que não comeria enlouquecidamente nas festas de fim de ano e, segundo (e mais importante), decidi que não compraria presentes caros (tendo como argumento óbvio a crise econômica global). Assim, além de não engordar quilos extras, começaria o ano sem contas a pagar.

Parecia genial, e todo o plano correria perfeitamente bem se, no momento das compras, eu não tivesse começado a pensar no quanto eu gosto das pessoas que pretendia presentear. Todas eram especiais e extremamente importantes para mim. Logo, era muito lógico que eu quisesse agradá-las de coração.

Diante de dois presentes igualmente bacanas, um mais caro e outro mais barato, pensei: Carambolas! É para minha mãe. É claro que vale a pena gastar mais com a pessoa que me carregou na barriga por nove meses e me criou. Mãe é mãe. Mãe só existe uma. Mãe é coisa de Deus. E coisa e tal.

Ok, presente caro comprado.

Logo em seguida, vou comprar uma camisa para o meu irmão. Aí sim eu poderia maneirar no preço. Afinal, era só uma “lembrancinha” – porque vocês sabem como é, né… irmão não é mãe. Peguei uma camisa barata e pensei que estava ótimo, quando percebi o quanto aquela outra bem mais cara era mais bonita. Mas, poxa, era para o meu irmãozão! Fui muito atormentada por ele na infância, mas era meu irmão querido! Certamente merecia algo muito bacana nesse fim de ano.

Ok, camisa cara comprada.

E assim se sucedeu com os outros presentes que comprei. Ora, todas são pessoas únicas e inigualáveis para mim. Por que não valorizá-las com presentes caros e bacanas? No fim das compras, tirando aquela tia chata, que merecia algo em liquidação, todos os presentes que comprei para as pessoas queridas fizeram jus a alguns reais a mais do que aqueles que eu planejara.

De repente, me dei conta de que o que parecia tão óbvio e razoável para mim era, na verdade, uma lógica extremamente perversa: eu estava medindo, ponderando e calculando o sentimento e apreço que possuo por uma pessoa a partir dos valores das mercadorias. Parei para pensar, então, no quanto eu fazia isso com frequência, e no quanto essa lógica nos parece natural.

O modelo de cultura capitalista nos leva a ponderar os nossos sentimentos e emoções utilizando como parâmetro de análise o valor das mercadorias. Assim sendo, se amo alguém incondicionalmente – e tenho, por óbvio, condições materiais que me permitam fazer tal coisa – me esforço para que eu possa lhe presentear com a mercadoria mais cara acessível no mercado (considerando o princípio da capacidade contributiva, já que o produto mais caro acessível para o clube de ostentação Mulheres Ricas provavelmente não o será para mim). E esta pessoa presenteada, por sua vez, certamente se sentirá fortemente agradecida e prestigiada em razão da minha disposição em trocar um tão alto valor pecuniário por tal produto destinado a ela.

Relacionar sentimentos, emoções, momentos históricos, valores de fraternidade, tradições, religiosidade, rituais e mitos com a necessidade de acesso a mercadorias é, na realidade, uma marca da moderna sociedade de consumo, ou, como diz o filósofo polonês Zigmunt Bauman, da sociedade de consumidores. Segundo Bauman, nossa identidade social moderna é constituída na medida em que somos moldados enquanto consumidores. As pessoas, nesse modelo de sociedade, passam a considerar a si mesmas enquanto mercadorias, inclusive no momento em que estabelecem relações afetivas com outras pessoas-mercadoria. Assim, um dos maiores dilemas filosóficos do nosso tempo seria o questionamento acerca de se é preciso consumir para viver, ou se a humanidade vive para poder consumir. Dito de outro modo, Bauman se pergunta: ainda somos capazes e sentimos necessidade de distinguir aquele que vive daquele que consome?

Parece-me que, de tão mediados pelas relações de consumo, nós, indivíduos consumidores, não conseguimos dissociar nossos afetos e sentimentos do desejo por mercadorias. E isso está presente, por exemplo, em qualquer data comemorativa do calendário. Seja para comemorar o nascimento do profeta mais influente da história humana, seja para comemorar a duração de um romance, seja para festejar a vida de alguém. Sentimentos e mercadorias caminham de mãos dadas na cultura do capital.

Depois de parar para pensar nisso… Bem, a promessa de comer menos no fim do ano pareceu irrelevante. E lá fui eu consumir peru.

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clarissa-alves

Clarissa é professora e doutoranda na área de direitos humanos e desenvolvimento. Pesquisa feminismo, migrações e relações de trabalho. Se calhar, está disposta a largar a academia e viver de sua arte.

Habitudes

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